sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

#31 Al Berto

Noite de Lisboa com Auto-retrato e Sombra de Ian Curtis

filamentos de gelatinoso néon invadem a catedral
em celulóide do filme nocturno: a arquitectura de asas
abóbadas de vento pássaros de lixo
som
pálpebras de lodo sobre a boca do homem que rasteja
de engate em engate pelas avenidas da memória
e quando encontra a porta de um bar mergulha no inferno
bebe furiosamente
o peito encostado ao zinco duma geração de subúrbio

presentes aqui os jovens, com a canga nos ombros

e o mundo poderia desabar dentro de 5 minutos
o corpo estilhaça
os vidros esfregados nos ombros no peito
onde uma veia rebenta para mostrar o radioso canto

depois dança contorce-se embriagado
cobre o rosto suado com aponta dos dedos espalha
sangue e cuspo construindo a derradeira máscara
cai para dentro do seu próprio labirinto
como se a verticalidade do corpo fosse um veneno

domina-o um estertor
uma corda invisível ata-lhe a voz
não se moverá mais
apesar de nunca ter avistado os órgãos profundos do corpo
sabe que também eles se calaram para sempre

a noite é imensa e já não tem ruídos
a morte vem dos pés sobe à cabeça alastra ferozmente
mas a sua inquietante brancura
só é perceptível na súbita erecção do enforcado

Joy Division

She's Lost Control

domingo, 23 de novembro de 2008

#30 - Martins Fontes

JAZZ-BAND


As raparigas americanas,
Cada qual delas mais primorosa,
Parecem feitas de porcelanas,
De opala e ouro, de neve e rosa!


Carnes de pêssego e de açucenas,
De tanta seiva, tanto viçor,
Que, sendo frutos, essas pequenas
Têm, na verdade, gosto de flor!


Sabor de folha de árvore nova,
Rica de um sumo que retempera,
Fazem a boca de quem as prova
Cheirar a essências da primavera!


São deliciosas essas meninas,
Como os morangos ao paladar!
Ai, Doroteias, ai, Catarinas,
Com que doçura sabeis amar!


Que alacridade, que juventude,
Têm Lady Ruby, Miss Adelaide!
Como deslumbra ver a saúde
Dessas papoulas do Riverside!


E todas elas, moças e frescas,
Sem um vestígio de creme ou khol,
Enamoradas e romanescas,
Semelham cravos, sorrindo ao sol!

Independentes, com ousadia,
Sem preconceitos, nem leis mundanas,
Bendita seja vossa alegria,
Lindas mulheres americanas!


A vós, queridas dos meus desejos,
A todas, todas, louco e febril,
Envio beijos, mas tantos beijos
Quantas estrelas há no Brasil!

Paul Whiteman feat. Roy Bargy

Rhapsody In Blue

terça-feira, 4 de novembro de 2008

# 29 - João Miguel Fernandes Jorge

THE BEACH BOYS

Aqueles cinco não eram os melhores na escola.
Todo o verão seguiam no Chrysler verde e branco
as ruas.
O aspecto do corpo tão nitidamente
contornado, a cor da pele, os cerrados olhos
cheios de anjos e demónios, de sombras de mortos,
de mulheres brancas.
Erguiam as noites pelos corredores dos bares
tão pouco espaço na esfera das visões
corpo masculino onde a poeira do verão conduz
a ideias brutas e primitivas, a extremos surpre-
endentes.
Aqueles cinco iam amarrotados no pequeno Morris.
Acompanhavam a moda no verão
cabelos, unhas, os próprios mamilos cortavam
num piedoso apego às coisas materiais.
Húmido, fantasiosos, ao seu lado o verão era mais
verão
entre as divididas esplanadas do mar.
Corriam como se fossem o aviso de uma calamidade.
A uns causavam terror
a outros davam alegria e consolação.

The Beach Boys

Good Vibrations

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

#28 - Fernando Pinto do Amaral

RIBAS

Não era bem a minha vida. Um gesto
afasta de repente o que sentimos, vai
por uma rua estreita como um gato
cinzento. O nevoeiro
descia sobre a praia, aproximava
o mar do céu. A minha mãe
passara ali os verões da sua longa
infância.

Sem dó nem piedade -- e todavia,
às vezes não sabia resistir:
zero um sete cinco nove,
mas faltava a coragem. Mais cruel
só o gume da espada, o silêncio que brilha
em olhos muito belos, quase iguais
aos teus. Adolescentes
surgiam pouco a pouco 'round midnight,
enrolando mortalhas -- tão fácil
respirar esse cheiro inocente, esquecer
o corpo, a alma e outras sempre inúteis,
insensatas razões.

Usavam roupas leves, confrontavam
teorias de engate. Voltei-me:
intermitentes luzes davam espaço
a uma sombra que eras tu -- devias
conhecer bem aquela casa,
as paredes caiadas, a porta pintada
de verde.

«Solitude stands in the doorway.» A voz
ignorava a passagem das horas,
todo o o bem, todo o mal, as promessas
que há num copo de gin quando ficamos
sozinhos, face a face
com o tempo que nos resta: «eu também sou
um sonho fugitivo.»

Não era bem a minha vida, apenas
um obscuro entusiasmo,
as lágrimas correndo sobre o rosto.

Thelonious Monk

'Round Midnight

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

#27 - Fernando Grade

A MÚSICA DAS TREVAS

Através dos vidros quebrados passou o anjo
e era apenas um nome em pânico, um brusco fender
sangrento de flores.
Anjo serve somente para pensar
que o fogo na floresta esta vez não foi muito cruel:
é uma palavra que esconde as calemas
e traz um cheiro de fruto à pele das raparigas
mas por muito bonito que o som seja
e viva carinhoso, íntimo entre as outras palavras
o mar ruge sempre e rasga as rochas
engole casas de pedra ou palha
O MAR NÃO NADA COM ANJOS.

Trazias (é verdade) o nome de anjo
para a minha vida. Era um bicho apaixonante com barbatanas e
guelras e tem passado o tempo a retalhar rosas.
Esse bicho poderás ser tu, leitora do caos
que te masturbavas há 20 anos ao som
dos meus versos lusos, à viola. Sei que vais envelhecendo
ao ritmo com que o Bob Dylan envelhece,
nos cabelos pretos que perco
em países de cidra e mel.

Através do medo em cobra passou o anjo
entre prédios novos e tristes que cheiram a taberna
mas a música das trevas zela por nós.

Bob Dylan

Forever Young

Paco Bandeira



Vamos Cantar de Pé

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

#26 - Levi Condinho

PENTECOSTES

O rosto oval de um negro
sósia de um mais escuro Milt Jackson -- o do vibrafone / carroussel
e o dela «pálida e loira muito loira e viva»
amorosa círculo aura sem contornos -- Grunewald --¨
entre faces e lábios e mãos trocando-se
axilas venusianas em curvatura flutuante
místicos sonâmbulos
corpo a corpo em sentada reclinação
sobre os degraus do altar lateral
cópula do incenso com a evolução do caril
o órgão e a flauta no alto coro
Telemann(eando) aos quatro ventos do templo
derramando sobre o amor dos amantes
pétalas fulvas de gladíolo
como outrora eu vi
-- eu vi -- nessas claras manhãs de Pentecostes

Milt Jackson & Benkó Dixieland Band

Bag's Groove

Georg Philipp Telemann

Adagio

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

#25 - Alberto de Lacerda

OUVINDO RAVI SHANKAR EM LONDRES

No tumulto ardente do teu canto
Existe a calma que eu necessito
É de dentro que eu preciso de sentir
As montanhas os planaltos e o fogo

As espadas circulares do fogo


Junho de 1966

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Ravi Shankar, feat. Anoushka Shankar

Raga Anandi Kalyan

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

#24 - Manuel de Freitas

Gloomy Sunday


Já em 1957 não eras tu que cantavas,
mas antes a morte por ti
-- e ninguém canta melhor. De permeio,
gestos simples de álcool somente
e a heroína gasta nas veias necessariamente
cansadas de um destino de aluguer
-- mais barato destino a esboroar-se na noite.


Ficaram imunes as trevas desse céu
onde só a dor é desmesura bastante
-- e delas renasce um timbre inconsolável
a lembrar-nos a morte cantante,
o mais que humano sentido de deslumbrante
fracasso. Essa mesma seringa já pronta
com que roubavas aos dias o seu azul forte,
uma cor demolida, um tão triste azul.

Como disse Lowry. A verdade encontrá-la-íamos
talvez na sombra perdida de todas as garrafas
com que um dia renunciámos ao mundo: Johnnie
Walker, Four Roses, Jameson, Jack Daniels,
Moskovskaya, Captain Morgan, José Cuervo, etc.
Um infindável folclore da agonia, desta
suave agonia que só repousaria na mais perversa
das luzes, mas também ela parecida com a morte.

Com a morte que permanece já nem palavra
sequer, mas baba imensamente repetida,
recalcada ou vomitada. Tanto faz,
único assunto em que as mãos depõem
a sua desesperante ferrugem
-- a que não pôde deter um saxofone
presidente demitindo-se pouco antes de ti.

Quando uma canção bastava afinal.
A própria morte cantando nos arredores
inúteis de uma lágrima furtiva,
sem rosto capaz. Essa tão longe canção azul
ainda, da cor dizimada que o pânico tem.

Da cor de um beijo dado mais tarde.

Billie Holiday

Gloomy Sunday

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

#23 Manuel de Freitas

ALL YOU NEED IS LOVE 1

E no entanto regressamos
-- aos becos onde o sangue
insiste em não ser tocado e visto.
À espera de novos punhais. Quem sabe?

Talvez a vontade -- desejo de anulação
nos braços tranquilos de ninguém.
Ou simples obstinação da carne, a levar-nos
por onde jurámos não ir, lembrados
das vísceras e das intempéries
a que emprestámos poemas mais
ou menos maus e uma urgência igual
à que julgamos sentir agora.

O amor? Não me fodam.
Apenas um filme sem enredo
que já vimos demasiadas vezes
e que vai continuar a acabar mal

-- como a puta da vida, aliás.

The Beatles

All You Need Is Love

#22 Manuel de Freitas

ALL YOU NEED IS LOVE 2

Mas não é bem assim, dir-se-á.
Vinte e seis séculos de lírica
deviam, pelo menos, provar o contrário
-- na hipótese argilosa de esses
cadáveres afamados terem alguma coisa
a dizer-nos quanto ao melhor método
de atravessar ruas superpovoadas.

Onde eu te vi passar, meu amor,
com o lenço vermelho, os cabelos
mais curtos e as pernas que embora
tenazes herméticas te davam -- por
assim dizer -- um ar sofrível de corpo.

Não sei porque é que reparei nisso,
logo eu, logo hoje. Simples distracção da morte
-- a reivindicar uma anatomia, e paz.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

#21 Fernando Pinto do Amaral

«AS TIME GOES BY»

Fizera uma promessa: ir ao encontro
de uma estranha miragem, mal sabia
porquê -- pedia apenas
«qualcosa da bere». Seria ridículo
ensinar truques ao destino, ouvir
a fala de um só deus. Ficava ali
sob o antigo temor
da beleza,
sob o poder da noite. Ousadias, receios,
tudo parecia igual.

Luminosos golfinhos sorriam,
enfeitavam o cais, esse caos
reflectido nos seus olhos. Sim,
talvez fosse esse rosto a construir
o decorrer do tempo, um sentimento
em música de fundo -- esplanadas
ao longo de palmeiras, a caminho
da maior solidão. Em San Remo
há mais de «cinco esquinas» e o Frágil
desaparecera noutro mar, submerso
em «prazer e glória» -- «a fight for love
and glory». A Agustina
tem deveras razão, é necessário
o sofrimento. Ainda bem
que as promessas não são para cumprir
e há uma porta aberta sobre a água.

Dooley Wilson

As Time Goes By

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

#20 Frederico Barbosa

Star Dust

(Lester Young
lendo Star Dust)

toda pele
quando ele toca
troca

arde
vira verde
trans-
parece

(Lester Young
lendo Star Dust)

nada nunca ninguém
quando ele toca ou fala
toca tão completamente
quando completa foi tocada

(Lester Young
lendo Star Dust)

Lester Young

Darn That Dream

Hoagy Carmichael

Star Dust

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

#19 - Eduardo Guerra Carneiro

RUY BELO

É no Café Nacional, em Vila do Conde,
e eu converso com Ruy Belo, nos anos
sessenta. Não é tempo dele avançar
em longas bebidas e os próprios Beatles
não gravaram ainda o álbum do Sargento Pimenta.
O Poeta bebe apenas da chícara o quente
cimbalino, enquanto espera a Teresa,
em casa dos pais, na doçaria ao lado.
É no Café Nacional, em Vila do Conde,
em domingo de bola na telefonia
do balcão. Ele fala-me das palavras
sábias do poema mas eu não sintonizo
e, ouvidos moucos, desligo, desconfiado
que são apenas palavras de beato.

The Beatles

Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band

domingo, 7 de setembro de 2008

#18 - Fernando Pinto do Amaral

AURAS


Ainda quase a medo, ias pedir-me
o primeiro cigarro dessa noite.
Passaram alguns dias e recordo
a lua sobre o pátio, entre o fumo
e o princípio de um sonho a proteger
o sorriso de dois corações.


Era quase absurdo -- quem vivia
por nós aquele idílio? Quem guiava
os passos clandestinos entre as alas
da casa adormecida? Outubro amou
aquela intimidade cada vez mais nossa
e o desejo de nos abraçarmos
como duas crianças, para lá
de toda a nostalgia deste mundo.


Falávamos de bruxas e duendes
que entravam pla janela. Como tu
conseguiste ser mais do que uma sombra
ao longo desse tempo! A lareira fundia
as nossas solidões uma na outra
ali, na sala, ao som da Sarah Vaughan.


Canções abertas rumo a cada espírito
durante esse momento em que as palavras
nada querem dizer, mas é possível
vislumbrar de repente
as coloridas auras que nos cercam,
divinas e terrenas, como o anjo
em que me transformei -- agora condenado
a milhares de perguntas que se perdem
na tua ausência ainda a cintilar
aqui
nas desesperadas luzes da cidade,
no último cigarro da noite.

Sarah Vaughan

I Can't Give You Anything But Love

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

#17 - Mário Avelar

Num canal menor


The gift of life is a shot in the dark,
Laurie Anderson


Uma gelosia
entreaberta, um
fulgor na manhã.
Apenas um breve

rumor sob o branco:
no lugar da fonte
nova, senti o
olhar do poeta,

gato, príncipe, em
seu trono. Não são
esses os caminhos
de Sião.

Laurie Anderson

Language Is A Virus

sábado, 30 de agosto de 2008

#16 - Levi Condinho

O VELHO AMOR


Nem sempre um saxofone anuncia a Páscoa
mas por aqui se sobem descendo
as curvas e contracurvas da senda
que a um calvário conduz serpenteando
contra o martírio a cruz os cravos os espinhos
a senda da radiosa e branca alegria
da alegria de anunciações matinais
-- nocturna seja a música --
pois também naqueles lábios Deus habitou
os de Julian Adderley -- recuso dizer Cannonball
-- alegria é paz
-- alegria é luz
e mais recuso a calúnia de blasfemo


nem sempre um saxofone foi obra do diabo
também o diabo celebrará a Páscoa
daquele que tentou sem vencer
desistindo -- vade retro -- pela fuga
ou por um excesso de amor magoado incompreendido
(oh vilipendiado Lúcifer)

jazz não é chaga sulfúrea de vício lúgubre
senão vede o coração pulsando
copulando no contrabaixo
grande esquife mugidor generoso corpo/caixa
vede pés e mão do baterista como esfregam
a matéria levitante
entre o éter e o sangue
buscando conciliação por dentro do tempo cerrado
(matemática linear paramentada em artifícios)


que mais poderia Deus querer
na grande falta da sua completa solidão
senão esta invenção pascal do jazz
para o fim do seu imenso tédio

Cannonball Adderley*

Jive Samba
*feat. Nat Adderley, Yusef Lateef & Joe Zawinul

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

#15 - Ricardo António Alves

Humanidade

A doçura daquela
voz a tristeza daqueles
olhos o calor da
trompete de
Armstrong o segregado
desmentindo o ódio

Louis Armstrong

On The Sunny Side Of The Street

sábado, 23 de agosto de 2008

#14 - João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)

O ídolo da juventude


estou morto sobre um piano abandonado
agoniado de jazz
descrente de sonhos que não me sonhei sonhar
reincidente nesta lucidez de estar farto de moscas
vou entrando nas répteis represas do presente
rasgando anjos de papel com as botas e os punhos
(o sangue cai sempre sem remorso
num silêncio incorruptível)
estou vivo num mar de plástico e excedentes
e o refrão soa distante como não haver mais distância
expande-se e reflui e explode nas minhas têmporas
no future no future no future
ergo a face o sorriso acoplado
leviathan cuspindo no chão
então digo
é meu o século do terror sem limites.

The Sex Pistols

God Save The Queen

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

#13 João Pedro Mésseder

DIANA KRALL

All or nothing at all
na retina do ouvido
a Diana Krall

Na cidade
um piano

E a noite?
Consente este gesto de luz?

O relógio das sombras
foi feito
para o tempo desta voz?

-- que tal como tu
diz ainda
P. S. I love you

Diana Krall

All Or Nothing At All

The Beatles

P.S. I Love You

domingo, 10 de agosto de 2008

#12 José Tolentino Mendonça

CONCERTO DOS TINDERSTICKS

Impossível dizer até que ponto
a rapidez de tudo
atinge as paisagens na sua certeza
o significado dos instintos
desde muito cedo
os modos de travessia, os receios
imagens em que não pensamos

pela noite tua voz descreve
isso de nós que não tem defesa
um amor
largado às sombras, irreconhecível
até de perto

dizem que se tratou de
derivas, ingenuidades, ilusões
o teu amor é um nome qualquer
que parte

Tindersticks


Can We Start Again

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

#11 João Pedro Mésseder

ELLA

Esta voz
-- confia --
faz da noite
o tesouro do dia

Ella Fitzgerald

How High The Moon

sábado, 5 de julho de 2008

#10 Ricardo António Alves

RORY GALLAGHER: FOLLOW ME

A voz
grave, quase gutural,
amacia cada riff
dedilhado com nervo,
como se a vida se esvaísse
das cordas daquela fender.

Puro malte irlandês.

Rory Gallagher

Follow Me

sábado, 3 de maio de 2008

#9 José do Carmo Francisco

S. D.


Não deixo que mais ninguém dispute estas lágrimas
Sei que morreste mas não reconheço a tua morte
Para mim não caíste nem foste para o hospital
Apenas flutuas a meio das escadas como num sonho


São apenas minhas estas silenciosas lágrimas
Que o meu inglês não traduz nem consegue traduzir
Fico com os discos e fotocopio os teus poemas
Para serem discutidos na aula e é tudo


É uma liturgia muito banal mas é minha
Não tenho outra maneira de te dizer adeus
Agora que enches de música outros territórios
Agora que alimentas uma grande saudade

Sandy Denny

Late November

sexta-feira, 25 de abril de 2008

#8 Fernando Cabrita

E DE SÚBITO, EIS


E de súbito, eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas.
Raparigas cruzavam Edgware Road inteira
perdendo-se pela Marylebone
com ares de fantasmas
e do meu lugar junto a King's Arms,
tendo por cima o cartaz
anunciando o concerto de Johnny Cash
e na mão a cerveja arrefecida,
eu podia vê-las passar e quase diria que eram belas,
e contudo mais não eram que o epítome
de toda a geração
e passavam de novo
com livros acabados de comprar
em qualquer antiquário
e com perfumes baratos
ou roupas de cores mortas
ou grandes romances de amor
por dentro das cabeças fantásticas,
fazendo nascer em mim a danada ânsia do poema.
E escrevia então um que começava «e de
súbito eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas»
e o poema doía-me
como se milhões de agulhas me florissem no corpo,
já o sol fracamente iluminava a cidade
e Edgware Road ficava deserta,
cruzada apenas por fantasmas
com ares de raparigas
que teriam decerto sido belas
e que não eram agora mais que
o epítome de toda a morte,
e eu ficava a vê-los passar,
perdendo-se para Marylebone ou Harrowby,
repetindo para que a noite me ouvisse
que
de súbito,
eis que aprendo a grande hegemonia de todas as coisas.

Johnny Cash

Hurt

segunda-feira, 14 de abril de 2008

#7 Manuel de Freitas

LACHRIMAE ANTIQUAE NOVAE (1604)

De mia morte vos diria
os precisos sinais
num acto de contorção. Mas
o alaúde quebrou-se,
cansado do favor do vento, e
é impossível como a alegria
a mais simples razão de dizer.

Quando o nome de Deus
me aflui resinoso aos lábios
nada quer dizer -- metáfora gasta
nos corredores da manhã,
a lembrar o silêncio das fontanas frias.

Se sabedes novas dos dias acabados
não mas digais, vos peço;
deixai que a voz ímpia de Sir
Elton John substitua hoje
as modinhas da tristeza
e a minuciosa anatomia do problema:

este líquido escuro, bilioso, que escorre
sem pressa pelos dias derradeiros
e se cristaliza às vezes
na retórica afável de quem chegou tarde.

Valeria Mignaco & Alfonso Marín

Flow My Tears, de John Dowland

Elton John

Your Song

segunda-feira, 7 de abril de 2008

#6 Adalberto Alves

HOME

A Simon & Garfunkel

De costas para o Plaza Hotel
Olho o Central Park
Território cruel
Onde se acendem chamas
Nos rostos marcados pela melancolia.
Kerouac e Ginsberg uivam
Alegres lobos possessos pela estrada fora
Whitman e Sandburg
Plantam florestas dentro dos grandes espaços interiores
E Cummings dá o mote de amor a Woody.
Quatro horas da tarde
Ergue-se no ar um cheiro mágico a sálvia, tomilho e salsa
Do vapor que brota das entranhas das ruas:
São dois rapazes errantes que cantam
Sábios como deuses decaídos
Os crepúsculos de que dia a dia se compõe a vida
O amor que vem e que apaga
A amizade ameaçada por águas turbulentas
E o regresso ao lar que no coração nós habitámos.
O Central Park parece o jardim do bairro que me criou
Lembro Lisboa e tenho vontade de voltar para casa.
New Yorl, somewhere, somehow

Simon & Garfunkel

Homeward Bound

sábado, 29 de março de 2008

#5 João Candeias

ESTÁTUAS JAZZENTES

voz extraordinária aquela entre silêncio e eco, pujante de avenidas nocturnas.
luzes acendem nas poças de chuva o seu brilho relento
para onde tomba o cigarro emudecido,
restos de desespero, soturna balada de acordes e fumos
disfarce de bruma para a noite dos delitos.
Café Bagdad -- nesta voz extraordinária entre o branco e o negro.
julgo-o filme, não o vejo, oiço as vozes,
os sons, a música, de costas para o cinema.
voz extraordinária que, imagino, trespassa a sombra
contra as paredes, do homem da gabardina negra
nos atalhos do caminho, nas encruzilhadas, e que finca os pés
na arqueologia do devir das grandes metrópoles.

pudesse eu reter toda a música do saxofone em surdina
o voo do sapateado, as palmas ritmadas,
e a voz, essa voz persistente e extraordinária
extraída das apressadas noites de amor
ou no sobressalto do dia nascendo.
também se falava muito de Brenda e de Charlie "Bird"
e depois o piano, adejante, como se fora de outro
tempo -- de outros filmes? -- de outro universo, outro destino
de coração entregue à noite onde dormem os monstros
do dia, como de dia dormem os príncipes da noite
envoltos em poalha de lantejoulas.
voz extraordinária aquela: da mão ao rosto
os olhos rendidos, atentos à música, ao corpo
até à última sílaba musical do silêncio

Jevetta Steele

Calling You (de Bagdad Café)

segunda-feira, 24 de março de 2008

#4 João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)

DISTANTE

«You'd better run and
join your brother John»

GENESIS
«The Lamb Lies Down On Broadway»

as horas as horas
como sombras
de um silêncio antigo para lá da memória
a minha carne dispersa
retém um nome acometido nas ruas --
thorem
meu irmão john espera-me
nessa noite de todas as viagens
ancoradas por um sopro no tempo
espera-me lá muito longe e nessa estranhada lonjura
é o seu ombro
que espera o meu
os seus olhos que procuram nos meus
reler a mesma indeclinável distância
parto agora
é que as luzes da cidade se extinguem
e os meus passos ecoam por dentro das casas.

Genesis

The Colony Of Slippermen

domingo, 23 de março de 2008

#3 Levi Condinho

DIREITO À PROPRIEDADE


Sou contra a propriedade privada
há no entanto objectos que são mesmo meus
um garrafão de vinho sempre disponível
discos do Bach do Archie Shepp ou do Zappa
o «Pela Estrada Fora» do Jack Kerouac
as «Poesias» de Álvaro de Campos
o «Ulisses» do Joyce
o «Outono em Pequim» do Boris Vian
o «Eros e Civilização» do Marcuse
a «Apresentação do Rosto» do Herberto Helder
os «Trópicos» do Henry Miller
o «Diário de um Ladrão» do Genet etc. etc.
sobretudo sobretudo
os 3 simpáticos companheiros
que tenho no meio das pernas

Frank Zappa

Teen-age Prostitute

Archie Shepp

Things Ain't What They Used To Be

Bach

Concerto de Brandeburgo - n.º 2 - I-Allegro Moderato
Orquestra Barroca de Freiburg

sábado, 22 de março de 2008

#2 Fernando Assis Pacheco

CHIADO, LISBOA: ESCRITOR À BARRA


"...que há-de haver sempre um Neil Diamond alto de mais perfazendo a destruição do ouvido médio"

"...que da vida levo poucas antes ardesse é o que penso à noite lembranças"

"...que me demoro na contemplação da minudência chamada (disseste?)"

"...que rapidamente um triste"

"...que isto ao menos levo: copos, e esses amigos amargos desfeitos na barra: achas que salvo algum?"

"...que a ideia seria misturar versos de três poetas (Pessoa, Maria Browne, Martin Codax) a ver"

"...que a raça humana filhos parentes deixavas quem à volta de quê"

"...que apesar da alta do custo de vida"

"...que as raparigas novas dão uma vontade de rir ao pé dos abat-jours ó pistautira"

"...que uma vez num malabar estava o Melo Antunes com sono"

"...que jamais beber o próprio peso em espécie Jim Beam's"

"...que tu paraste: parei?: a dita revolução na via uriginária portuguesa: o uriginol!"

"...que fecha às três toda a conversa let's come to Barbados"

"...que à cabeça do fósforo, zzk"

"...que mau grado os apetites por uma literatura ao serviço do puâbo"

"...que somos um funeral"

"...que me resta de ti em pequenas partículas no cinzeiro da Swissair"

Neil Diamond

Love On The Rocks

sexta-feira, 21 de março de 2008

#1 João Pedro Mésseder

BILLIE HOLIDAY

Canta e é um barco
canta o barro das águas

Por detrás a nuvem do sono
o silêncio
o algodão

e um grito
(há um estranho fruto
enforcado numa árvore)

Canta
E como se o não quisera
dói e flutua

Billie Holiday



Strange Fruit