quarta-feira, 24 de setembro de 2008

#24 - Manuel de Freitas

Gloomy Sunday


Já em 1957 não eras tu que cantavas,
mas antes a morte por ti
-- e ninguém canta melhor. De permeio,
gestos simples de álcool somente
e a heroína gasta nas veias necessariamente
cansadas de um destino de aluguer
-- mais barato destino a esboroar-se na noite.


Ficaram imunes as trevas desse céu
onde só a dor é desmesura bastante
-- e delas renasce um timbre inconsolável
a lembrar-nos a morte cantante,
o mais que humano sentido de deslumbrante
fracasso. Essa mesma seringa já pronta
com que roubavas aos dias o seu azul forte,
uma cor demolida, um tão triste azul.

Como disse Lowry. A verdade encontrá-la-íamos
talvez na sombra perdida de todas as garrafas
com que um dia renunciámos ao mundo: Johnnie
Walker, Four Roses, Jameson, Jack Daniels,
Moskovskaya, Captain Morgan, José Cuervo, etc.
Um infindável folclore da agonia, desta
suave agonia que só repousaria na mais perversa
das luzes, mas também ela parecida com a morte.

Com a morte que permanece já nem palavra
sequer, mas baba imensamente repetida,
recalcada ou vomitada. Tanto faz,
único assunto em que as mãos depõem
a sua desesperante ferrugem
-- a que não pôde deter um saxofone
presidente demitindo-se pouco antes de ti.

Quando uma canção bastava afinal.
A própria morte cantando nos arredores
inúteis de uma lágrima furtiva,
sem rosto capaz. Essa tão longe canção azul
ainda, da cor dizimada que o pânico tem.

Da cor de um beijo dado mais tarde.

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