sexta-feira, 25 de abril de 2008

#8 Fernando Cabrita

E DE SÚBITO, EIS


E de súbito, eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas.
Raparigas cruzavam Edgware Road inteira
perdendo-se pela Marylebone
com ares de fantasmas
e do meu lugar junto a King's Arms,
tendo por cima o cartaz
anunciando o concerto de Johnny Cash
e na mão a cerveja arrefecida,
eu podia vê-las passar e quase diria que eram belas,
e contudo mais não eram que o epítome
de toda a geração
e passavam de novo
com livros acabados de comprar
em qualquer antiquário
e com perfumes baratos
ou roupas de cores mortas
ou grandes romances de amor
por dentro das cabeças fantásticas,
fazendo nascer em mim a danada ânsia do poema.
E escrevia então um que começava «e de
súbito eis que aprendo
a grande hegemonia de todas as coisas»
e o poema doía-me
como se milhões de agulhas me florissem no corpo,
já o sol fracamente iluminava a cidade
e Edgware Road ficava deserta,
cruzada apenas por fantasmas
com ares de raparigas
que teriam decerto sido belas
e que não eram agora mais que
o epítome de toda a morte,
e eu ficava a vê-los passar,
perdendo-se para Marylebone ou Harrowby,
repetindo para que a noite me ouvisse
que
de súbito,
eis que aprendo a grande hegemonia de todas as coisas.

Johnny Cash

Hurt

segunda-feira, 14 de abril de 2008

#7 Manuel de Freitas

LACHRIMAE ANTIQUAE NOVAE (1604)

De mia morte vos diria
os precisos sinais
num acto de contorção. Mas
o alaúde quebrou-se,
cansado do favor do vento, e
é impossível como a alegria
a mais simples razão de dizer.

Quando o nome de Deus
me aflui resinoso aos lábios
nada quer dizer -- metáfora gasta
nos corredores da manhã,
a lembrar o silêncio das fontanas frias.

Se sabedes novas dos dias acabados
não mas digais, vos peço;
deixai que a voz ímpia de Sir
Elton John substitua hoje
as modinhas da tristeza
e a minuciosa anatomia do problema:

este líquido escuro, bilioso, que escorre
sem pressa pelos dias derradeiros
e se cristaliza às vezes
na retórica afável de quem chegou tarde.

Valeria Mignaco & Alfonso Marín

Flow My Tears, de John Dowland

Elton John

Your Song

segunda-feira, 7 de abril de 2008

#6 Adalberto Alves

HOME

A Simon & Garfunkel

De costas para o Plaza Hotel
Olho o Central Park
Território cruel
Onde se acendem chamas
Nos rostos marcados pela melancolia.
Kerouac e Ginsberg uivam
Alegres lobos possessos pela estrada fora
Whitman e Sandburg
Plantam florestas dentro dos grandes espaços interiores
E Cummings dá o mote de amor a Woody.
Quatro horas da tarde
Ergue-se no ar um cheiro mágico a sálvia, tomilho e salsa
Do vapor que brota das entranhas das ruas:
São dois rapazes errantes que cantam
Sábios como deuses decaídos
Os crepúsculos de que dia a dia se compõe a vida
O amor que vem e que apaga
A amizade ameaçada por águas turbulentas
E o regresso ao lar que no coração nós habitámos.
O Central Park parece o jardim do bairro que me criou
Lembro Lisboa e tenho vontade de voltar para casa.
New Yorl, somewhere, somehow

Simon & Garfunkel

Homeward Bound