segunda-feira, 27 de outubro de 2008

#28 - Fernando Pinto do Amaral

RIBAS

Não era bem a minha vida. Um gesto
afasta de repente o que sentimos, vai
por uma rua estreita como um gato
cinzento. O nevoeiro
descia sobre a praia, aproximava
o mar do céu. A minha mãe
passara ali os verões da sua longa
infância.

Sem dó nem piedade -- e todavia,
às vezes não sabia resistir:
zero um sete cinco nove,
mas faltava a coragem. Mais cruel
só o gume da espada, o silêncio que brilha
em olhos muito belos, quase iguais
aos teus. Adolescentes
surgiam pouco a pouco 'round midnight,
enrolando mortalhas -- tão fácil
respirar esse cheiro inocente, esquecer
o corpo, a alma e outras sempre inúteis,
insensatas razões.

Usavam roupas leves, confrontavam
teorias de engate. Voltei-me:
intermitentes luzes davam espaço
a uma sombra que eras tu -- devias
conhecer bem aquela casa,
as paredes caiadas, a porta pintada
de verde.

«Solitude stands in the doorway.» A voz
ignorava a passagem das horas,
todo o o bem, todo o mal, as promessas
que há num copo de gin quando ficamos
sozinhos, face a face
com o tempo que nos resta: «eu também sou
um sonho fugitivo.»

Não era bem a minha vida, apenas
um obscuro entusiasmo,
as lágrimas correndo sobre o rosto.

Thelonious Monk

'Round Midnight

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

#27 - Fernando Grade

A MÚSICA DAS TREVAS

Através dos vidros quebrados passou o anjo
e era apenas um nome em pânico, um brusco fender
sangrento de flores.
Anjo serve somente para pensar
que o fogo na floresta esta vez não foi muito cruel:
é uma palavra que esconde as calemas
e traz um cheiro de fruto à pele das raparigas
mas por muito bonito que o som seja
e viva carinhoso, íntimo entre as outras palavras
o mar ruge sempre e rasga as rochas
engole casas de pedra ou palha
O MAR NÃO NADA COM ANJOS.

Trazias (é verdade) o nome de anjo
para a minha vida. Era um bicho apaixonante com barbatanas e
guelras e tem passado o tempo a retalhar rosas.
Esse bicho poderás ser tu, leitora do caos
que te masturbavas há 20 anos ao som
dos meus versos lusos, à viola. Sei que vais envelhecendo
ao ritmo com que o Bob Dylan envelhece,
nos cabelos pretos que perco
em países de cidra e mel.

Através do medo em cobra passou o anjo
entre prédios novos e tristes que cheiram a taberna
mas a música das trevas zela por nós.

Bob Dylan

Forever Young

Paco Bandeira



Vamos Cantar de Pé

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

#26 - Levi Condinho

PENTECOSTES

O rosto oval de um negro
sósia de um mais escuro Milt Jackson -- o do vibrafone / carroussel
e o dela «pálida e loira muito loira e viva»
amorosa círculo aura sem contornos -- Grunewald --¨
entre faces e lábios e mãos trocando-se
axilas venusianas em curvatura flutuante
místicos sonâmbulos
corpo a corpo em sentada reclinação
sobre os degraus do altar lateral
cópula do incenso com a evolução do caril
o órgão e a flauta no alto coro
Telemann(eando) aos quatro ventos do templo
derramando sobre o amor dos amantes
pétalas fulvas de gladíolo
como outrora eu vi
-- eu vi -- nessas claras manhãs de Pentecostes

Milt Jackson & Benkó Dixieland Band

Bag's Groove

Georg Philipp Telemann

Adagio

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

#25 - Alberto de Lacerda

OUVINDO RAVI SHANKAR EM LONDRES

No tumulto ardente do teu canto
Existe a calma que eu necessito
É de dentro que eu preciso de sentir
As montanhas os planaltos e o fogo

As espadas circulares do fogo


Junho de 1966