quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

#51 - Fernando Pinto do Amaral

ELEGIA DE MANHATTAN


Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Álvaro de Campos


Conheces a cidade. Toda a gente
atravessou um dia aquelas ruas
à procura de um sonho. Em mil écrans
irrompem as imagens desse mundo
que é também o teu mundo, o mais precário
lugar das nossas vidas. Imagina
a neve no inverno, alguns esquilos
saltando em Central Park de ramo em ramo
entre as folhas vermelhas do outono
e percorre outra vez esse caminho:
Quinta Avenida, 42nd Street,
as esquinas de Greenwich Village
ou a Broadway inteira até Times Square
onde brilham os néons que anunciam
as cintilantes cotações do Nasdaq
-- ORCL, CSO, MFST, QCOM --
isso a que chamam o capitalismo
ou simplesmente civilização.


Símbolos, tudo símbolos, bem sabes,
tal como as nove letras da palavra
MANHATTAN
no filme do Woody Allen. Faltam-lhe hoje
as torres que sustentam o H
-- o mesmo H com que antes escrevias
uma palavra como Humanidade.


Morreu o século XX, dizem eles,
e as guerras serão outras. É mentira,
tu sabes que é mentira, que esta guerra
é a mesma e já dura há muito tempo
-- plo menos desde o velho Torquemada
ou do homenzinho austríaco, o
frustrado, o Reischfürer que sonhou
até ao fim com o dia da vingança.


Esse dia chegou, não digas nada,
põe de novo a cabeça entre as mãos,
vê como o sol abraça o fim do verão
e escuta ainda a voz da Blossom Dearie
gravada há pouco mais de quarenta anos:
«We'll turn Manhattan
into an isle of joy.»


11-9-2001

Blossom Dearie

Manhattan

domingo, 13 de dezembro de 2009

#50 - Paulo Abrunhosa

O lince
acha-se o Prince!

Prince

Somwhere Here On Earth

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

#49 Pedro Tamen

Não se toca outra vez: nem com a mão que roça
a pele que já não é a mesma,
nem o intrumento vibra um ar que se repita.
A literal certeza de uma asserção assim
faz que seja novo cada passo na relva,
cada pardal, ou beijo.
Mas há outro sentido, Sam, velho Sam,
em que não podes outra vez tocar:
é que o tempo deveras se escoou
e foi pra não sei onde, onde não há.

Piano podes ter, ouvidos e memória:
só te falta outra vez.

Dooley Wilson

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

#47 Daniel Maia-Pinto Rodrigues

O Grande Tocador de Xilofone


No primeiro dia
vou, ainda que de lampejo, a dar um beijo
toca o telefone
Vou levantar a tampa da retrete
toca o telefone
Vou o espírito libertar ouvindo os Roxette
toca o telefone
Vou tocar uma pívia
toca o telefone
Vou tocar xilofone
toca o telefone
Vou a constatar que o telefone está sempre a tocar
toca o telefone

No segundo dia
saí para desanuviar
encontrei-te
a tomar um café com leite
e dei-te o meu telefone
No terceiro dia
estive atento ao telefone
mas o telefone não te trouxe
No quarto dia
desliguei o telefone
E eis-nos chegados ao quinto e último dia
dos dias que te referirei
e tanto esses dias, como também este textozinho
vão necessitar de um final
Qual escolheis
o final que termina bem
ou o final que termina mal?
Assinalo que elaborei mais
aquele que termina bem
Repito a pergunta
qual dos dois escolheis?
Para quem ainda não decidiu
eu vou expressar os dois finais
O que termina mal é assim
basicamente
ao quinto dia
saí para desanuviar
e todos vós me vistes, basicamente
Por sua vez o que termina bem
é
ao quinto dia
saí para desanuviar
saí para desanuviar mas é o raio!
encontrei-te
levei-te, trouxe-te e levei-te
levantámos a tampa da retrete
estilhaçámos ao som dos Roxette
percutimos o xilofone
cuspimos no telefone
demos um beijo, que não de lampejo
animámos o já vivido, amámos o divertido
metendo a boca e o nariz no queijo derretido

Roxette

Spending My Time

domingo, 15 de novembro de 2009

#46 Vasco Graça Moura

quizás, quizás, quizás


quando se está com gripe e nos dói toda a cara
o mal-estar só passa imaginando
que mozart uma vez encontrou nat king cole
e pôs-se a acompanhar quizás, quizás, quizás


a voz de um era rouca na curva do bolero
e o piano gemendo em graves da mão esquerda
dava a sua resposta asiempre que me preguntas
e triste era o refrão, quizás, quizás, quizás.


na música e na vida, algum desesperado,
mesmo sem estar com gripe ia perdendo o tempo,
sombrio, alccolizado, pelas melancolias
da voz e do piano, quizás, quizás, quizás.

nat king cole e mozart, depois de improvisarem,
fumaram um cigarro e foram-se trocando
trauteios, estranhezas, de blues e de sonatas,
mas tudo fragmentário, quizás, quizás, quizás.


se algum saxofone pegasse nesse tema,
juntando variações azuis e lancinantes,
podíamos ouvir um köchel qualquer coisa
be bop e dissonante, quizás, quizás, quizás.


e voltaria a voz em ritmos sacudidos,
no bar, na discoteca, nas sombras, nas entranhas.
nat king cole a cantar, mozart a acompanhá-lo,
ah, turvos corações, quizás, quizás, quizás.

Nat King Cole

Quizás Quizás Quizás

Wolfgang Amadeus Mozart

Sonata para piano K333, Allegro assai, Maria João Pires

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

#45 Pedro Mexia

DE REPENTE

Andava por Lisboa a falar-te de Leonard Cohen
e de repente já não estavas a meu lado.
Então pombos e pardais e outros pássaros
esvoaçaram entre Lisboa o Cohen e a tua ausência.

Leonard Cohen

The Stranger Song

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

#44 Pedro Strecht

1979

muito tempo antes
parece agora breves minutos
as mesmas tardes passadas brincando
os jogos de caixa o estojo das experiências
não podíamos evitar as de explosão
o subutteo a raspar os joelhos
os longos relatos pela rádio noite fora
portugal campeão mundial de hóquei
os duelos do rali serra acima
até o sono chegar à hora certa
e então subitamente a mudança
como era possível algumas pessoas a música
baterem tão fundo ao coração
e disso alguma impossibilidade de partilhar
os segredos profundos da intimidade
traduzindo-se noutra forma de olhar
para quem conhecemos bem ou talvez não
e depois saber que o caminho era em frente
sentir o passado tão forte e não parar
o desejo de descobrir a crescer
recordo ver cair a noite envolvendo
depois de um banho tomado
o cheiro a água-de-colónia espanhola
quando o primeiro calor chegava
finalmente dormir de janela aberta
algum barulho repetido sincopado de carros
embalava ainda mas tudo estava diferente
e de repente já não era rita coolidge
envolta num mel lustroso
a cantar que lá fora a chuva começara
era joy division a abrir na guitarra
o amor vai dilacerrar-nos uma voz profunda
e a maior distância era essa
tão forte mas tão pessoal
que não valia a pena contâ-la
tão-somente vivê-la e dizer assim
este sou eu e quem vier a conhecer-me
leva-me já

Rita Coolidge

We're All Alone

Joy Division

Love Will Tears Us Apart

sábado, 11 de julho de 2009

# 43 João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)

EUROPA

sentes o vento no sopé da estátua
desdizendo o sal
de que foi feito o excesso e a renúncia
a gasta memória de preces demasiado escutadas
cavalo enlouquecido
pelo orgulho de empédocles --
ogni viltà convien che quia sia morta.
ouço a respiração densa dos séculos
os homens calcaram o seu próximo calcularam
essa incerta rota do ouro e do cânhamo --
fusão das calotes na imensidão
a cotovia bailou com o urso
-- doía a semente das gerações lançada
na terra ferida
pelo teu riso de peste e excomunhão
águia bêbada de amor
lúbrica e cúpida meretríssima senhora
da pólvora e das insígnias
da razão.
naufragaste com sepúlveda
numa impremeditada nudez própria agora
selling england by the pound
acaso te reconheças por imagens cruas
e a serpente da astúcia troçou do teu meio-dia
num lacht die welt der grause vorhang riss
die hochzeit kommt fur licht und finsterniss.

Genesis

Dancing With The Moonlit Knight

sexta-feira, 12 de junho de 2009

#42 - Fernando Cabrita

ST. QUINTIN AVENUE

Na fria noite de Fevereiro,
passando já sem ler
as páginas de um qualquer Hammet,
recordo as ilhas ao sul do meu país
onde tudo foi luz
e brevidade
e a brancura delas ao longe ainda me perturba.

Vejo o fogo,
acidentado e terrivelmente eterno,
tremente,
aprisionado na lareira
como um sábio ou um poeta
entre a vastidão de um sonho
e a correria dos dias.
Sonhos, palavras, sonhos...
Quantos e que sonhos vão talvez vogando
nestes quartos
desta velha casa de St. Quintin Avenue?
Quantos ideais a si mesmo se entretecem
num bordado agreste
de noites e silêncios?
Que pensará a velha senhora do rés-do-chão
que só dificilmente entrevejo
no sombrio crepúsculo das cinco horas
recolhendo os seus gatos
ou o jornal à porta de casa?
Que geniais ou insensatos
serão os sonhos das duas jovens espanholas
do quarto já ao lado
que constantemente me pedem lhes troque
moedas para longínquos telefonemas,
que discutem e gritam e se agridem
até que a polícia as venha buscar de madrugada
e regressam pela manhã
de novo amigas?
Que difíceis planos congeminam
para toda a existência breve?
Ou nada mais querem
afinal
que o alegre sabor dos dias
e os silêncio das almas
por entre o frio londrino de Fevereiro?
E o esguio rodesiano do segundo andar
que raramente deixa ouvir do quarto
um qualquer ruído,
descendo de quando em quando
tão somente por detrás
de uns óculos tímidos?
Que futuro traça no arisco círculo das tardes
e das noites,
palmilhando a neve lá de fora?
Recordo pois as ilhas
que foram já imensas caravelas
e celebradas melodias,
o verão sorridente e antigo,
demorando na amizade da sombra.
Oiço-lhes as antiquíssimas flautas
pacificamente erguidas na escuridão
e no silêncio, os sussurros dos amantes
um no outro descobertos,
o som português do mar
afeiçoando aos litorais a sua mão
de luar e espuma.
Quantos sonhos, como fantasmas,
estarão por esta hora
espreitando a rua
por detrás de janelas e cortinas,
olhando o movimento ténue dos carros
e a deserção dos pubs
à nocturna hora?
Em silêncio os tento adivinhar
entre a memória
de juventude e fogos.
Ao fundo do corredor vive Abigail
de quem só sei o nome e que está só.
Falamos às vezes
de coisas vazias,
transitórios vizinhos que somos
parando de tempos em tempos no mesmo degrau
da mesma escada
que a lado nenhum conduz.
É loira e da sua janela aberta às vezes
para o triste quintal das traseiras
saiem sons de Joe Cocker
numa surdina metálica.
Que sonhos serão os dela,
no coração acomodados?
Que coisas estranhas e hábeis verá
quando ao fim da tarde
deixa perder-se no horizonte de casas e ruas
o olhar cansado?
Faz frio como só Fevereiro sabe
e fecho o livro.
Já nem leio,
jé nem entendo os sinais
e os dizeres.
Sós as ilhas me voltam à lembrança pátria,
brancas e frágeis
como a tarde dos tempos.
Só as ilhas,
as ilhas,
as ilhas...

Joe Cocker

Cry Me a River

domingo, 17 de maio de 2009

#41 - João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)

Hashish

a cabeça bate lateralmente (um som cavo)
as pernas flectem no esboço de um passo
vagas alternas vibram no ar
a luz multicolor e caleidoscópica
modela algo que é ainda um espaço posto que
rarefeito (ou sintético?)
ouço música tocar (possivelmente john cale)
longe lá ainda
a percepção inquieta de outros sorrisos sinceros e afáveis.

John Cale

Hallelujah

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Artur Queiroz

As festas do clube no tempo do Bill Halley e os seus cometas, o Harry Belafonte, a misse das colheitas; sapato roto e peúga rota: cheiro a katinga e mais nada. Quem que queria dançar contigo? -- menina não. O melhor é ficar a ver. Uma destas de ver. Ainda a filha de um negro pode te dar sorte. Agora uma branca? Tampa, é pá!

Bill Halley

Shake, Rattle And Roll

Harry Belafonte

Streets Of London

terça-feira, 14 de abril de 2009

#40 - Fernando Cabrita

A PELE DOS DIAS

Eis a pele dos dias, frágil
e cinzenta como o vasto palco
do céu onde decorrem nuvens e pombos,
ou a subterrânea trepidação da cidade
cruzada de comboios entre Richmond e Upminster.
Tudo tem aqui essa fragilidade
de cinza, os carros e as árvores,
os parques e as fontes,
as grades e as luzes
de súbito declaradas como fogos,
o semblante turvo das paredes,
o regresso a casa ao entardecer,
a juventude já morando para a eternidade
nos salões do espírito.
Mas há o bálsamo sagrado dos sonhos,
a imaginação galgante os doridos rochedos do real,
Simon e Garfunkel sabendo a infância
no fundo limite do segredo do som,
a recordação de um poema de Herberto Helder
ou um amor adiado regressando à memória
acesa pelo crepúsculo,
um cheiro ainda a verão no limite da alma,
uma mão na esquina do olhar
acenando como uma deusa que nos houvesse
sido prometida.
Sinto que o tempo se escoa a cada passo
ou que a cera da idade aos poucos
se derrete.
Eis como tudo é, fragil e cinzento
como a estranha pele dos dias.

Simon and Garfunkel

The Sound Of Silence

segunda-feira, 30 de março de 2009

#39 - João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)

Perigo de vida

«There's a party in my mind
and I hope it never stops»

TALKING HEADS
«Fear of Music»

as mãos no presente não se iludem
tremem os dedos aturdidos
os cigarros são vozes demasiado escutadas
confundem-se seus solilóquios sempre lentos e acerados
degolar a irmã não é excitante
o copo rebola de riso pelo chão
velhos pederastas fizeram-me propostas nada obscenas
tornei a ser sovado na rua
com naturalidade
the grasshopper lies heavy the grasshopper lies heavy
subir escadas talvez onde o irreconhecível
e pendurar-me no espaço com os headphones postos
vozes roucas estragos visíveis
saltar de combóios em andamento é fácil
quando se é jovem os avisos perdem-se
no diálogo dos gestos e asserções lugares incomuns
resgatar final
a imediata solidão própria nem muito fiel
a precaridade do ser
não há árvores imarcescíveis ruy belo.

domingo, 29 de março de 2009

David Byrne

Memories Can't Wait

segunda-feira, 16 de março de 2009

#38 - Mário Avelar

Herba Santa

Associo melodias às estações,
a instantes mais ou
menos vagos na memória. O
Verão de oitenta e cinco, por exemplo.

Regressara nese tempo da pátria
dos heroís. Os dias fluiam entre
a viagem de um amor vindo
de longe e um almoço fora de horas
num qualquer snack em Lisboa, cracking.

Com liberdade, livros, flores e
a lua, quem não pode ser feliz?

Sim, havia ainda os livros e
a música, o frágil encanto de
Suzanne Vega.

Suzanne Vega

Luka

sábado, 28 de fevereiro de 2009

#37 - Fernando Cabrita

LADBROKE GROVE


Tinham as húmidas mãos
quando os vi
descansadas sobre os dias
como se a neve que lhes dourasse os ombros
não fosse mais que a morte esperada
e no entanto adiada
a palavra longínqua que os vendavais abafaram
a carta do continente
que não falava de águias ou de tâmaras
nem sugeria as doces primaveras.
Erravam
os braços como galhos caídos na alta invernia
quando os comboios assomavam
o seu líquido assobio
no frio das manhãs
o chá quente com leite fumegando
entre os dedos assombrosos.
Falavam com a voz rouca dos gelos imemoriais
com a angústia dormida na noite dos tempos
junto ao coração sem nexo
sussurando os sonhos infantis
que caminhavam por entre o sono e os farrapos
como as baratas nas garrafas vazias da esperança
e nas pequenas pontas de cigarro
fumadas e cuspidas
um velho cachecol como uma vaga
que assolasse os píncaros do sossego.
Tinham as húmidas mãos
quando os vi
aquecendo uma na outra as veias grossas
a lembrança de coisa nenhuma
doentes de gozo
sidérios


misteriosos
os olhos cravados na negrura da face
a fruta moída pelos sapatos gastos
a conversa sem senso
sem gosto
os gestos fundidos nas paredes sujas
da longa avenida
os escuros portões
os becos transversais.
Tinham
quando os vi
um loiro kebab arrefecendo nas mãos
os doentes cantando a sinfonia gelada das tardes
recebendo ainda as cartas que já nem liam
trauteando Cohen entre a nebilna
como pássaros de medo e escuridão
áugures do silêncio e do segredo
calados como templos antigos demorados nas planícies
mas eternos e puros
como a chama das civilizações
os olhos crispados na velocidade das horas
as húmidas mãos deitadas
quando os vi
na tremenda passagem dos dias em direcção à morte.

Leonard Cohen

Take This Waltz

sábado, 21 de fevereiro de 2009

#36 Manuel de Freitas

LADY DAY SINGS SOLITUDE

Amanhece, como um parto inútil e reticente.
Suponhamos que estou vivo, na casa
tão branca e vazia, com este corpo em trepasse
-- quase meu. O irritante chilreio dos pássaros
poderia ter um encanto anacrónico se acaso o tivesse.
mas mesmo ele será daqui a pouco sufocado
pelo ruído do primeiro avião
que passará rasante vindo de longes terras
onde se é mais feliz por delegação.
Saúdo a manhã como quem dispensava vê-la,
copo de whisky barato na mão
para tentar tornar menos barata
a literatura vã que daqui possa sair.

A pouco e pouco, o flagelo da luz
conquista a casa e reaparecem
os nomes dos livros, os cinzeiros cheios,
a mágoa insuportavelmente banal
de mais um dia que começa e que não será
talvez o último -- embora estatísticas
várias comprovem que a morte existe
(são poucos é os que se apercebem disso).

A noite passou, sem sono nem alegria.
E eu esqueci-me de lavar a louça
e de encontrar um sentido para a vida
(truque poético bastante conhecido).
O amor não bateu à porta com as suas mãos
frágeis e desonestas, nenhum amigo
-- desses que não tenho -- quis ludibriar
a sua solidão bebendo um copo comigo.
limitei-me a folhear alguns livros,
com o cansaço pévio de saber
que os vou ler. Pus em dia a correspondência
cada vez mais escassa, ofício de afectos
fingidos, calculados silêncios, fórmulas
feitas. E ouvi música desolada, que
é a parte de Deus que melhor conheço.

Fiz não o que pude, mas aquilo
que me permitiu o fluente nada dos gestos.
A claridade é agora fulminante e eu
não tive nenhum êxtase místico,
coisa tão decorativa em esgares, não
deparei com nenhum programa social
que me parecesse exequível, não
aderi a qualquer crença política
para enfim conhecer Bruxelas.
Não me lembrei de nada que valesse a pena.

Fiquei em casa sozinho, no renovado
esforço de não reparar em como
é fétido tudo. E embebedei-me,
como sempre faço quando me sinto
sentir (o que por azar é frequente).
Não fechei as janelas, deixei a luz corromper-me.

Há talvez uma harmonia bizarra
no modo como o pó assenta nos móveis,
uma razão insondável para as nuvens
que conspurcam o vazio do céu,
um motivo confrangedor para eu respirar
ainda, sem jeito nenhum para a morte.

Não sei. Vivi mais um dia, inglório
como os que já foram, fútil como os que virão.
Acariciei o vazio com mãos de seda quebradas
e não me queixei nem sorri
(de resto, porque haveria de o fazer?).

outro avião passou, trazendo ou levando
pessoas que é suposto terem alma,
essa indefinível e funesta coisa
sem a qual este poema desabaria
antes mesmo de se ter começado. Pouco
se perderia, aliás, pois não é nas palavras
que o que se perde regressa alguma vez.
Sucessivos malogros, interstícios vagos
do que nunca poderá ser
ou se dissipou em remorso e ausência.

A vista sobre Monsanto é agora quase bela,
mas não me lembro de ter sido feliz
(há ainda obscenidades que desconheço).
O sol passeia-se sobre todos os telhados
que daqui se lobrigam e eu perscruto atento
a dor que há nisso e em tudo.
Não dormi, estou até demasiado desperto,
a olhar para mim sem me ver. É curioso,
ou chega quase a sê-lo: são precisos
mais de vinte cigarros e uma garrafa inteira
de whisky para escrever um poema
que de sublime terá a intenção -- ou nem isso.
A morte pode esperar,
hei-de estar lá a horas, finalmente anónimo,
capaz de desfrutar a mais ampla morada,
a mais verdadeira e total.

Billie Holiday



Solitude

domingo, 1 de fevereiro de 2009

#35 - Levi Condinho

RANHURAS


Ranhuras no sótão
rascunhos na gaveta tarde na noite só
dormem todos e estão bem enquanto dormem
há uma nódoa negra no Alentejo
como podia ser a minha camisa inocente
um voo planante e redondo de andorinha
uma pobre coruja nunca socializada
na pérfida mente da Humanidade
ranhuras na alma silvo de comboio de ferro
rasgar do vinho nas tripas iradas
o fato branco do objector de consciência na arca
e a tristeza da boina vermelha
de um enorme campónio feito comando dos infernos
um jovem saturado de heroína
à espera do Lou Reed que o não salvará
porque "só há saída pelo fundo" (Cristovam Pavia)


Bach regressa sempre como se fora Deus

Lou Reed

Johann Sebastian Bach

Jesus Bleibt Meine Freude
Concentus Music Wien, Nikolaus Harnoncourt

domingo, 25 de janeiro de 2009

#34 - Fernando Pinto do Amaral

STRANGERS IN THE NIGHT

Entrava pelas janelas uma nuvem
de incandescente néon -- no jardim
uma brisa do sul ia agitando
palmeiras e pessoas a caminho
do casino. Tão longe, a minha alma
arrastava-me os dedos na memória
das teclas que sabia já de cor,
na espuma fria do piano. Ali
estava eu a tocar enquanto alguém
mastigava entre os lábios feitos lama
palavras inglesas, irreais
canções que toda a gente conhecia
talvez desde o Sinatra ou mesmo antes,
num labirinto de reminiscências
agora tão confusas, de ouvido em ouvido,
cem mil vezes cantadas na penumbra
de restaurantes como aquele, no fumo
de acidentais conversas entre mesas
onde ardiam as velas e os sorrisos
por vezes desabados em cascatas
de gargalhadas que eu já nem ouvia.


A minha solidão todas as noites
iluminava a dor das melodias
que falavam de amores desencontrados
e outras pequenas mágoas sem regresso,
civilizadas e cosmopolitas
como os casais vestidos a rigor:
velhos súbditos de Sua Majestade
em smokings muito brancos, ressurgindo
de algum conto do Somerset Maugham
e só de vez em quando uns três ou quatro
portugueses perdidos na ilusão
de fantasias prontas a servir
num cenário dourado, entre a patine
de espelhos e de sonhos. Era assim
aquele hotel de luxo à sexta-feira:
jantar dançante à luz de cinco estrelas
que cintilavam sempre até à última
gotícula de som, até ao último
parzinho que deixasse aquela pista
finalmente vazia, à mercê do meu medo.


Entraria mais tarde pla janela
um farrapo de cinza, o meu destino
esquecido e friorento, simulando,
entre o silêncio cavo do piano
e o sopro do mar enrouquecido,
o luar sempre falso de outro céu
onde apenas brilhassem cinco estrelas
cadentes -- essas cinco últimas lágrimas
que um pianista obscuro como eu
nunca teve coragem de chorar.

Frank Sinatra

Strangers In The Night

domingo, 11 de janeiro de 2009

#33 João Paulo Monteiro (Ângelo Novo)

Introdução à teoria das catástrofes

o quark provavelmente é cindível
e nunca haveremos de perceber grande coisa
da economia da matéria informação entropia calor
não procures a beleza resiste
a vozes que não te chamam nem escutam
cresce e organiza-te.

em verdade vivo numa era de trevas --
dizia o b. b. (1898-1956) --
uma palavra que não seja dúplice é um absurdo
as ciências propõem jogos de azar
os políticos sorriem
e uma nuvem pousou no coração da europa
carregada de pensamentos secretos que
se partilham já sem horror.
springsteen em minneapolis e a juventus
no communale há uma vibração eléctrica no ar
sinto-a passar ela
sacode o coração das multidões
e este bate em uníssono brutalmente
sen sentido.

Bruce Springsteen

This Land Is Your Land

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

#32 Frederico Barbosa

Lascaux


no cinema de Lascaux
(imagem sobre imagem)
cortes:
séculos de Klee


recortes de cores
nos desenhos do Kane
na voz bellae
(Billie & Ella)
nas suas pernas cruzadas
em frente à tv

mágico quase acaso
colorindo
(como que sem querer)
a caverna escura
em que a gente se vê

Billie Holiday

Fine And Mellow

Ella Fitzgerald

Angel Eyes