terça-feira, 30 de setembro de 2008

Ravi Shankar, feat. Anoushka Shankar

Raga Anandi Kalyan

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

#24 - Manuel de Freitas

Gloomy Sunday


Já em 1957 não eras tu que cantavas,
mas antes a morte por ti
-- e ninguém canta melhor. De permeio,
gestos simples de álcool somente
e a heroína gasta nas veias necessariamente
cansadas de um destino de aluguer
-- mais barato destino a esboroar-se na noite.


Ficaram imunes as trevas desse céu
onde só a dor é desmesura bastante
-- e delas renasce um timbre inconsolável
a lembrar-nos a morte cantante,
o mais que humano sentido de deslumbrante
fracasso. Essa mesma seringa já pronta
com que roubavas aos dias o seu azul forte,
uma cor demolida, um tão triste azul.

Como disse Lowry. A verdade encontrá-la-íamos
talvez na sombra perdida de todas as garrafas
com que um dia renunciámos ao mundo: Johnnie
Walker, Four Roses, Jameson, Jack Daniels,
Moskovskaya, Captain Morgan, José Cuervo, etc.
Um infindável folclore da agonia, desta
suave agonia que só repousaria na mais perversa
das luzes, mas também ela parecida com a morte.

Com a morte que permanece já nem palavra
sequer, mas baba imensamente repetida,
recalcada ou vomitada. Tanto faz,
único assunto em que as mãos depõem
a sua desesperante ferrugem
-- a que não pôde deter um saxofone
presidente demitindo-se pouco antes de ti.

Quando uma canção bastava afinal.
A própria morte cantando nos arredores
inúteis de uma lágrima furtiva,
sem rosto capaz. Essa tão longe canção azul
ainda, da cor dizimada que o pânico tem.

Da cor de um beijo dado mais tarde.

Billie Holiday

Gloomy Sunday

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

#23 Manuel de Freitas

ALL YOU NEED IS LOVE 1

E no entanto regressamos
-- aos becos onde o sangue
insiste em não ser tocado e visto.
À espera de novos punhais. Quem sabe?

Talvez a vontade -- desejo de anulação
nos braços tranquilos de ninguém.
Ou simples obstinação da carne, a levar-nos
por onde jurámos não ir, lembrados
das vísceras e das intempéries
a que emprestámos poemas mais
ou menos maus e uma urgência igual
à que julgamos sentir agora.

O amor? Não me fodam.
Apenas um filme sem enredo
que já vimos demasiadas vezes
e que vai continuar a acabar mal

-- como a puta da vida, aliás.

The Beatles

All You Need Is Love

#22 Manuel de Freitas

ALL YOU NEED IS LOVE 2

Mas não é bem assim, dir-se-á.
Vinte e seis séculos de lírica
deviam, pelo menos, provar o contrário
-- na hipótese argilosa de esses
cadáveres afamados terem alguma coisa
a dizer-nos quanto ao melhor método
de atravessar ruas superpovoadas.

Onde eu te vi passar, meu amor,
com o lenço vermelho, os cabelos
mais curtos e as pernas que embora
tenazes herméticas te davam -- por
assim dizer -- um ar sofrível de corpo.

Não sei porque é que reparei nisso,
logo eu, logo hoje. Simples distracção da morte
-- a reivindicar uma anatomia, e paz.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

#21 Fernando Pinto do Amaral

«AS TIME GOES BY»

Fizera uma promessa: ir ao encontro
de uma estranha miragem, mal sabia
porquê -- pedia apenas
«qualcosa da bere». Seria ridículo
ensinar truques ao destino, ouvir
a fala de um só deus. Ficava ali
sob o antigo temor
da beleza,
sob o poder da noite. Ousadias, receios,
tudo parecia igual.

Luminosos golfinhos sorriam,
enfeitavam o cais, esse caos
reflectido nos seus olhos. Sim,
talvez fosse esse rosto a construir
o decorrer do tempo, um sentimento
em música de fundo -- esplanadas
ao longo de palmeiras, a caminho
da maior solidão. Em San Remo
há mais de «cinco esquinas» e o Frágil
desaparecera noutro mar, submerso
em «prazer e glória» -- «a fight for love
and glory». A Agustina
tem deveras razão, é necessário
o sofrimento. Ainda bem
que as promessas não são para cumprir
e há uma porta aberta sobre a água.

Dooley Wilson

As Time Goes By

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

#20 Frederico Barbosa

Star Dust

(Lester Young
lendo Star Dust)

toda pele
quando ele toca
troca

arde
vira verde
trans-
parece

(Lester Young
lendo Star Dust)

nada nunca ninguém
quando ele toca ou fala
toca tão completamente
quando completa foi tocada

(Lester Young
lendo Star Dust)

Lester Young

Darn That Dream

Hoagy Carmichael

Star Dust

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

#19 - Eduardo Guerra Carneiro

RUY BELO

É no Café Nacional, em Vila do Conde,
e eu converso com Ruy Belo, nos anos
sessenta. Não é tempo dele avançar
em longas bebidas e os próprios Beatles
não gravaram ainda o álbum do Sargento Pimenta.
O Poeta bebe apenas da chícara o quente
cimbalino, enquanto espera a Teresa,
em casa dos pais, na doçaria ao lado.
É no Café Nacional, em Vila do Conde,
em domingo de bola na telefonia
do balcão. Ele fala-me das palavras
sábias do poema mas eu não sintonizo
e, ouvidos moucos, desligo, desconfiado
que são apenas palavras de beato.

The Beatles

Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band

domingo, 7 de setembro de 2008

#18 - Fernando Pinto do Amaral

AURAS


Ainda quase a medo, ias pedir-me
o primeiro cigarro dessa noite.
Passaram alguns dias e recordo
a lua sobre o pátio, entre o fumo
e o princípio de um sonho a proteger
o sorriso de dois corações.


Era quase absurdo -- quem vivia
por nós aquele idílio? Quem guiava
os passos clandestinos entre as alas
da casa adormecida? Outubro amou
aquela intimidade cada vez mais nossa
e o desejo de nos abraçarmos
como duas crianças, para lá
de toda a nostalgia deste mundo.


Falávamos de bruxas e duendes
que entravam pla janela. Como tu
conseguiste ser mais do que uma sombra
ao longo desse tempo! A lareira fundia
as nossas solidões uma na outra
ali, na sala, ao som da Sarah Vaughan.


Canções abertas rumo a cada espírito
durante esse momento em que as palavras
nada querem dizer, mas é possível
vislumbrar de repente
as coloridas auras que nos cercam,
divinas e terrenas, como o anjo
em que me transformei -- agora condenado
a milhares de perguntas que se perdem
na tua ausência ainda a cintilar
aqui
nas desesperadas luzes da cidade,
no último cigarro da noite.

Sarah Vaughan

I Can't Give You Anything But Love

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

#17 - Mário Avelar

Num canal menor


The gift of life is a shot in the dark,
Laurie Anderson


Uma gelosia
entreaberta, um
fulgor na manhã.
Apenas um breve

rumor sob o branco:
no lugar da fonte
nova, senti o
olhar do poeta,

gato, príncipe, em
seu trono. Não são
esses os caminhos
de Sião.

Laurie Anderson

Language Is A Virus