sábado, 28 de fevereiro de 2009

#37 - Fernando Cabrita

LADBROKE GROVE


Tinham as húmidas mãos
quando os vi
descansadas sobre os dias
como se a neve que lhes dourasse os ombros
não fosse mais que a morte esperada
e no entanto adiada
a palavra longínqua que os vendavais abafaram
a carta do continente
que não falava de águias ou de tâmaras
nem sugeria as doces primaveras.
Erravam
os braços como galhos caídos na alta invernia
quando os comboios assomavam
o seu líquido assobio
no frio das manhãs
o chá quente com leite fumegando
entre os dedos assombrosos.
Falavam com a voz rouca dos gelos imemoriais
com a angústia dormida na noite dos tempos
junto ao coração sem nexo
sussurando os sonhos infantis
que caminhavam por entre o sono e os farrapos
como as baratas nas garrafas vazias da esperança
e nas pequenas pontas de cigarro
fumadas e cuspidas
um velho cachecol como uma vaga
que assolasse os píncaros do sossego.
Tinham as húmidas mãos
quando os vi
aquecendo uma na outra as veias grossas
a lembrança de coisa nenhuma
doentes de gozo
sidérios


misteriosos
os olhos cravados na negrura da face
a fruta moída pelos sapatos gastos
a conversa sem senso
sem gosto
os gestos fundidos nas paredes sujas
da longa avenida
os escuros portões
os becos transversais.
Tinham
quando os vi
um loiro kebab arrefecendo nas mãos
os doentes cantando a sinfonia gelada das tardes
recebendo ainda as cartas que já nem liam
trauteando Cohen entre a nebilna
como pássaros de medo e escuridão
áugures do silêncio e do segredo
calados como templos antigos demorados nas planícies
mas eternos e puros
como a chama das civilizações
os olhos crispados na velocidade das horas
as húmidas mãos deitadas
quando os vi
na tremenda passagem dos dias em direcção à morte.

Leonard Cohen

Take This Waltz

sábado, 21 de fevereiro de 2009

#36 Manuel de Freitas

LADY DAY SINGS SOLITUDE

Amanhece, como um parto inútil e reticente.
Suponhamos que estou vivo, na casa
tão branca e vazia, com este corpo em trepasse
-- quase meu. O irritante chilreio dos pássaros
poderia ter um encanto anacrónico se acaso o tivesse.
mas mesmo ele será daqui a pouco sufocado
pelo ruído do primeiro avião
que passará rasante vindo de longes terras
onde se é mais feliz por delegação.
Saúdo a manhã como quem dispensava vê-la,
copo de whisky barato na mão
para tentar tornar menos barata
a literatura vã que daqui possa sair.

A pouco e pouco, o flagelo da luz
conquista a casa e reaparecem
os nomes dos livros, os cinzeiros cheios,
a mágoa insuportavelmente banal
de mais um dia que começa e que não será
talvez o último -- embora estatísticas
várias comprovem que a morte existe
(são poucos é os que se apercebem disso).

A noite passou, sem sono nem alegria.
E eu esqueci-me de lavar a louça
e de encontrar um sentido para a vida
(truque poético bastante conhecido).
O amor não bateu à porta com as suas mãos
frágeis e desonestas, nenhum amigo
-- desses que não tenho -- quis ludibriar
a sua solidão bebendo um copo comigo.
limitei-me a folhear alguns livros,
com o cansaço pévio de saber
que os vou ler. Pus em dia a correspondência
cada vez mais escassa, ofício de afectos
fingidos, calculados silêncios, fórmulas
feitas. E ouvi música desolada, que
é a parte de Deus que melhor conheço.

Fiz não o que pude, mas aquilo
que me permitiu o fluente nada dos gestos.
A claridade é agora fulminante e eu
não tive nenhum êxtase místico,
coisa tão decorativa em esgares, não
deparei com nenhum programa social
que me parecesse exequível, não
aderi a qualquer crença política
para enfim conhecer Bruxelas.
Não me lembrei de nada que valesse a pena.

Fiquei em casa sozinho, no renovado
esforço de não reparar em como
é fétido tudo. E embebedei-me,
como sempre faço quando me sinto
sentir (o que por azar é frequente).
Não fechei as janelas, deixei a luz corromper-me.

Há talvez uma harmonia bizarra
no modo como o pó assenta nos móveis,
uma razão insondável para as nuvens
que conspurcam o vazio do céu,
um motivo confrangedor para eu respirar
ainda, sem jeito nenhum para a morte.

Não sei. Vivi mais um dia, inglório
como os que já foram, fútil como os que virão.
Acariciei o vazio com mãos de seda quebradas
e não me queixei nem sorri
(de resto, porque haveria de o fazer?).

outro avião passou, trazendo ou levando
pessoas que é suposto terem alma,
essa indefinível e funesta coisa
sem a qual este poema desabaria
antes mesmo de se ter começado. Pouco
se perderia, aliás, pois não é nas palavras
que o que se perde regressa alguma vez.
Sucessivos malogros, interstícios vagos
do que nunca poderá ser
ou se dissipou em remorso e ausência.

A vista sobre Monsanto é agora quase bela,
mas não me lembro de ter sido feliz
(há ainda obscenidades que desconheço).
O sol passeia-se sobre todos os telhados
que daqui se lobrigam e eu perscruto atento
a dor que há nisso e em tudo.
Não dormi, estou até demasiado desperto,
a olhar para mim sem me ver. É curioso,
ou chega quase a sê-lo: são precisos
mais de vinte cigarros e uma garrafa inteira
de whisky para escrever um poema
que de sublime terá a intenção -- ou nem isso.
A morte pode esperar,
hei-de estar lá a horas, finalmente anónimo,
capaz de desfrutar a mais ampla morada,
a mais verdadeira e total.

Billie Holiday



Solitude

domingo, 1 de fevereiro de 2009

#35 - Levi Condinho

RANHURAS


Ranhuras no sótão
rascunhos na gaveta tarde na noite só
dormem todos e estão bem enquanto dormem
há uma nódoa negra no Alentejo
como podia ser a minha camisa inocente
um voo planante e redondo de andorinha
uma pobre coruja nunca socializada
na pérfida mente da Humanidade
ranhuras na alma silvo de comboio de ferro
rasgar do vinho nas tripas iradas
o fato branco do objector de consciência na arca
e a tristeza da boina vermelha
de um enorme campónio feito comando dos infernos
um jovem saturado de heroína
à espera do Lou Reed que o não salvará
porque "só há saída pelo fundo" (Cristovam Pavia)


Bach regressa sempre como se fora Deus

Lou Reed

Johann Sebastian Bach

Jesus Bleibt Meine Freude
Concentus Music Wien, Nikolaus Harnoncourt