sexta-feira, 12 de junho de 2009

#42 - Fernando Cabrita

ST. QUINTIN AVENUE

Na fria noite de Fevereiro,
passando já sem ler
as páginas de um qualquer Hammet,
recordo as ilhas ao sul do meu país
onde tudo foi luz
e brevidade
e a brancura delas ao longe ainda me perturba.

Vejo o fogo,
acidentado e terrivelmente eterno,
tremente,
aprisionado na lareira
como um sábio ou um poeta
entre a vastidão de um sonho
e a correria dos dias.
Sonhos, palavras, sonhos...
Quantos e que sonhos vão talvez vogando
nestes quartos
desta velha casa de St. Quintin Avenue?
Quantos ideais a si mesmo se entretecem
num bordado agreste
de noites e silêncios?
Que pensará a velha senhora do rés-do-chão
que só dificilmente entrevejo
no sombrio crepúsculo das cinco horas
recolhendo os seus gatos
ou o jornal à porta de casa?
Que geniais ou insensatos
serão os sonhos das duas jovens espanholas
do quarto já ao lado
que constantemente me pedem lhes troque
moedas para longínquos telefonemas,
que discutem e gritam e se agridem
até que a polícia as venha buscar de madrugada
e regressam pela manhã
de novo amigas?
Que difíceis planos congeminam
para toda a existência breve?
Ou nada mais querem
afinal
que o alegre sabor dos dias
e os silêncio das almas
por entre o frio londrino de Fevereiro?
E o esguio rodesiano do segundo andar
que raramente deixa ouvir do quarto
um qualquer ruído,
descendo de quando em quando
tão somente por detrás
de uns óculos tímidos?
Que futuro traça no arisco círculo das tardes
e das noites,
palmilhando a neve lá de fora?
Recordo pois as ilhas
que foram já imensas caravelas
e celebradas melodias,
o verão sorridente e antigo,
demorando na amizade da sombra.
Oiço-lhes as antiquíssimas flautas
pacificamente erguidas na escuridão
e no silêncio, os sussurros dos amantes
um no outro descobertos,
o som português do mar
afeiçoando aos litorais a sua mão
de luar e espuma.
Quantos sonhos, como fantasmas,
estarão por esta hora
espreitando a rua
por detrás de janelas e cortinas,
olhando o movimento ténue dos carros
e a deserção dos pubs
à nocturna hora?
Em silêncio os tento adivinhar
entre a memória
de juventude e fogos.
Ao fundo do corredor vive Abigail
de quem só sei o nome e que está só.
Falamos às vezes
de coisas vazias,
transitórios vizinhos que somos
parando de tempos em tempos no mesmo degrau
da mesma escada
que a lado nenhum conduz.
É loira e da sua janela aberta às vezes
para o triste quintal das traseiras
saiem sons de Joe Cocker
numa surdina metálica.
Que sonhos serão os dela,
no coração acomodados?
Que coisas estranhas e hábeis verá
quando ao fim da tarde
deixa perder-se no horizonte de casas e ruas
o olhar cansado?
Faz frio como só Fevereiro sabe
e fecho o livro.
Já nem leio,
jé nem entendo os sinais
e os dizeres.
Sós as ilhas me voltam à lembrança pátria,
brancas e frágeis
como a tarde dos tempos.
Só as ilhas,
as ilhas,
as ilhas...

Joe Cocker

Cry Me a River